Vou começar a relatar uma experiência que estou vivendo. Sou professora de matemática e tenho uma aluna com surdez total, pouca leitura labial, pouco de libras e nada ou o mínimo de matemática. Eu, nada de libras e uma vontade muito grande de ensinar. Para facilitar, vou chamar minha aluna de Ela, eu? Bem, eu sou Eu e a escola é Lá. Onde? Lá, na escola. E vamos para o relato, que intitulei Eu e Ela, Nossa História
Início do ano letivo, estou numa sala de aula e vejo pequenos olhos, tristes, me olhando. Que será que Ela estará pensando? Sei que Ela é surda, será que faz a leitura labial? Não sei... Coloco na lousa a expressão: 2x+5=7. Façam meninos, disse eu.
Ela continua me olhando. Faço sinal e Ela faz com a cabeça que não. Acho que Ela não sabe. Acho que sou um “bicho papão” aqui na frente tentando me fazer ouvir. Resolvo a equação e pergunto qual o valor de X? Quem é o X? Como fazer o X em libras. Preciso aprender libras e me comunicar com Ela. É o X da questão.
Assim, como numa inspiração Divina, vou até a DE da minha cidade e peço ajuda para uma pessoa, que vou chamá-la carinhosamente de minha amiga M. M me forneceu material, idéias, dicas, dicionário de libras, livro. Fui tentar me virar. Busquei algumas palavras no dicionário em DVD. Cheguei toda animada na Escola, fui direto para a sala de aula onde Ela estuda. Não era minha aula, mas mesmo assim mostrei o que tinha aprendido: alguns números, outros sinais... Ela sorriu. Foi a primeira vez que pude ver seus dentinhos.
Nunca tinha notado que Ela não sorria muito. Olhos tristes...
No dia seguinte, fui dar aula na sua classe. Explicando a matéria, fiz sinal do 1, 2, 3, 4,5. O cinco fiz errado; Ela sorriu e me ensinou. Cabeça dura a minha, não consigo. Ela tentou, tentou, até que consegui. Puxa, foi difícil. É engraçado, eu não estou em seu mundo, Ela tampouco no meu. Mundos distantes e tão juntos.
Mostrei para Ela os sinais de +, -, x e: será que Ela sabe dividir? Mostrei algumas contas, Ela fez, mas não as de divisão.
Já sei outra coisa a seu respeito, não compreende a divisão e eu aprendi a fazer o “compreender” em libras, sinal é fácil. Mostrei, compreende? Escrevi algumas palavras, Ela fez sinal que não. Acho que Ela não sabe ler. Que coisa!
Mostrei o desenho de uma bala, custa R$ 0,10, mostrei outras, quanto custa? Fiz alguns sinais: dinheiro, interjeição com os ombros, quanto custa? Ela compreendeu os sinais, mas não a operação. Mostrei o desenho da bala, Ela não compreendeu o desenho. Vou ter que repensar. Meus desenhos são horríveis.
Não sei muito bem o que está acontecendo. Ela tem me procurado nos intervalos e na saída das aulas, fala bastante, ou pelo menos balbucia algo. Numa tentativa louca para entender o que quer, decifro algumas coisas. Certo dia, após várias tentativas e gestos, percebei algo como Ateal, talvez uma pessoa de lá, será sua terapeuta? Xiii acho que fiz algo errado!
Mesmo assim, elaborei um caderno com figuras de propagandas de supermercado. Vou explicar o que pretendo fazer: devo preparar Ela para a vida. Então, o conteúdo deve ser matemática financeira. Ela deve saber fazer cálculos, quanto custa, preço fixo, lucro, porcentagem, margem de lucro e preço de venda. A melhor forma é começarmos com os preços dos produtos dos mercados. Meio litro de óleo custa tanto. Quanto custa dois? Ou três? Para tanto coloco uma figura, faço com que Ela compreenda o significado; depois, duas, quanto custa? Três figuras, quanto custa?
Na DE, M me informa que o caminho é bom.
E lá vou eu, agora já sabendo outras palavras: compreender, falar, trabalhar, o cinco... Mostrei o caderno, expliquei uma vez, duas três.... até que...Ela fez, vejam, Ela fez! Quanto custa? Ela escreveu os preços e somou. As operações são feitas na calculadora porque, no momento, o importante é o raciocínio. E Ela fez... Vibrei como vibrei. Isso mesmo, três, fiz eu com gestos ou em libras, três, quanto custa? E dois? E cinco? Fazer o cinco ainda é divertido. Parece um coelho...
Ela ficou feliz, seus olhos já não são mais tristes, eles brilham... brilham como estrelas refletindo uma luz interior. Ela está aprendendo. Será esse o aprender a fazer? Aprender aprendendo? Aprender a conviver? Não sei, vou seguindo.
Durante minhas tentativas em sala de aula, Ela fica nitidamente aflita ao observar os demais alunos, que são 39, correndo, bagunçando. Chamo a atenção, peço silêncio, gritos do silêncio, já li isso em algum lugar. E grito novamente, Silêncio! As salas de aula que possuem alunos de inclusão não deveriam ter tantos estudantes, não é justo para com o professor, que quer ensinar.
Expliquei aos demais alunos potências de 10, transformações de números muito grandes ou muito pequenos em notação científica. Ela entendeu1 Ela entendeu! Fez os exercícios e, pasmem: explicou para uma outra aluna como faziam as atividades.
Agora são olhos de orgulho, os meus.
Fez sozinha algumas somas com as figuras. Acertou!
Com gestos, tenta se expressar, falar algo. Quando me vê no corredor ou no pátio, vem e gesticula sinais que não sei o significado. Tento adivinhar será que não fez o dever? É isso, falo, não fez o dever? Sim, era isso.
E assim, vamos seguindo o “Day by Day” de uma história que está apenas começando. Eu e Ela estamos aprendendo a aprender, juntas, ensinar aprendendo, aprender ensinando ou qualquer coisa parecida.
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