“Esse aluno tem um laudo?” Laudo médico ou pedagógico?

A valorização do Laudo Pedagógico a partir da Documentação Pedagógica na prática da Educação Inclusiva. 

Vivemos tempos de supervalorização do laudo médico na área da educação. Geralmente esse laudo chega à escola antes do aluno e passa a ocupar o “lugar da criança”, pois acredita-se que ele é capaz de definir “quem realmente a criança é”, resultando em sérias consequências para todos os envolvidos no processo de aprendizagem. 

O cenário é de desvalorização do saber docente pautado na prática educativa, considerado inferior ao fundamentado pela medicina e pela psicologia. Infelizmente, o discurso medicalizante tornou-se comum entre os profissionais da educação, à medida que enfatizam a necessidade de acompanhamento médico para alunos com dificuldade ou transtorno de aprendizagem. Desse modo, passamos a acreditar que a medicina e a psicologia são capazes de solucionar problemas que a educação traz no seu cotidiano. 

Esse lapso é destacado por vários estudiosos, dentre os quais Fanizzi ( 2017), mestre em educação pela USP, pesquisadora dos efeitos do discurso medicalizante no cotidiano de professores e alunos. Conforme consta em sua tese: “O pedagogo ou professor dá um passo para trás e cede espaço a alguém que fala como especialista: detentores de saberes médicos e psi, autorizados a discorrer acerca da normalidade ou anormalidade de determinados comportamentos do sujeito – aluno.” 

O laudo médico em si não é o problema, ele é indispensável para que as famílias encontrem respostas para comportamentos e características que fazem do nosso aluno “um sujeito desviante”: o laudo garante direitos e insere alunos com transtorno do espectro autista, com deficiência física ou intelectual e com altas habilidades na modalidade da Educação Especial, assegurando todo o apoio previsto na legislação.

 Portanto, se o laudo é um texto com um parecer técnico e especializado, é fundamental enaltecer a elaboração desse documento pelo professor da classe regular quando necessário, dado que aproximadamente 20% dos alunos de uma classe apresentam dificuldades ou transtornos de aprendizagem. 

Mas o que observar e o que registrar? Observar o aluno como um ser competente e que aprende, suas habilidades e dificuldades, considerando o que ele consegue fazer, o que faz com ajuda e o que ainda não consegue fazer, pois segundo Rinaldi (2020,p.237), pedagoga e gestora que vivenciou a abordagem Reggio Emília: “O aprendizado não ocorre de forma linear, determinada e determinista, em estágios progressivos e previsíveis; pelo contrário, é construído por meio de avanços simultâneos, paralisações e “recuos” que tomam diversas direções.”

 A abordagem Reggio Emilia fundamenta-se no reconhecimento das múltiplas potencialidades da criança e tem como principal estratégia a Documentação Pedagógica, na qual os professores registram as etapas do processo de ensino-aprendizagem para reflexão e interpretação. 

Para Dahlberg, Moss e Pence ( 2019,p.193 ), “A documentação pedagógica diz respeito principalmente à tentativa de enxergar e entender o que está acontecendo no trabalho pedagógico e o que a criança é capaz de fazer sem qualquer estrutura pré-determinada de expectativa e normas.”

 Assim, não se trata de mais um documento meramente burocrático, desvinculado da realidade cotidiana, refere-se ao registro de uma prática de observação e de escuta do sujeito, da documentação do processo e não do produto, da ação do professor como um cientista que revisita seus registros junto ao aluno para avaliar a construção do conhecimento.

 Essa prática torna-se uma parte do ensinar e aprender recíprocos pois, além de seu papel de apoio e de mediação cultural, se o educador sabe como observar, fazer a documentação e interpretá-la, poderá alcançar o seu mais alto potencial para ensinar e aprender, afirma Rinaldi (2020). 

 Considero a documentação pedagógica o ponto de partida para a elaboração de um laudo pedagógico fundamentado e comprometido com a aprendizagem personalizada, um documento valoroso para promover um compartilhamento de informações sobre o desenvolvimento da criança com seus familiares e com os profissionais da saúde. 

E se “Somos quem somos pelo que aprendemos e lembramos” (Kandel), a análise dos registros favorece a memória e a reflexão, além de contribuir para a construção da identidade do aluno. O laudo médico passará a cumprir seu papel de apenas acrescentar informações e assegurar alguns direitos. 

Aprender significa criar memórias de longa duração, e quanto mais o educador combinar estratégias e estímulos emocionantes aos registros do processo de aprendizagem, maiores as chances de garantir um aprendizado efetivo para todos os alunos, valorizando e respeitando suas peculiaridades.



 Carina Zanini Professora na Rede Pública do Estado de São Paulo, com especialização em Práticas de Ensino de Geografia, em Educação Inclusiva, cursando Neuropsicopedagogia. 

DALHBERG G., MOSS P. e PENCE A. , Qualidade na Educação da Primeira Infância: perspectivas pós modernas, Porto Alegre: Penso, 2019 

FANIZZI C, “A Educação e a Busca por um Laudo que Diga Quem És. 2017, Dissertação Mestrado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2017.

 RINALDI, Carla, Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender, 12ªed., Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020

4 comentários:

  1. Suas colocações professora Carina, são sempre pertinentes e muito valiosas. Parabéns!

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  2. Considerações de grande valor. Obrigada.

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  3. A clareza e consistência das colações demonstram seu profundo conhecimento sobre o assunto. O importante é que o laudo médico em si não resolve as questões pedagógicas, mas essa observação e entendimento sim. Essa observação e bom senso são necessários para todos, pois todos tem em algum nível ou momento alguma dificuldade. Parabéns!

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  4. Obrigada professora Carina, mais uma vez, não só expondo sua visão, mas intervindo, nos auxiliando nessa grande aventura de ensinar e aprender. Parabéns

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